30 de dezembro de 2012

Ano novo

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente" 

Cortar o Tempo - Carlos Drumond de Andrade


Oi, amor. Como é que você tá? Olha, eu sei que você está chateado, desculpa ter vindo aqui te fazer me ouvir mesmo depois de você me pedir pra que não viesse. Amor, na verdade, me desculpe por esse ano inteiro. Eu sei que ele foi chato. E obrigada por ter ficado do meu lado por todo esse tempo.

Sabe, eu fico lembrando de como esse ano começou. Fico lembrando o quanto ele foi denso. Você me disse que esse ano eu paguei todos os meus pecados, lembra? Eu cumpri todos os meus objetivos, e eu tive muitas realizações de uma vez só. Eu anotei, na minha agenda, umas tarefas a serem cumpridas... e, que engraçado, realizei todas elas. Que pena, ficou tudo tão vazio agora! É mais gostoso enquanto o sonho é só a fantasia, que quando ele torna-se realidade. É bom quando sempre tem um sonho pendente, que não se realiza, pra te impulsionar a continuar a viver, entende?

Amor, eu fico pensando, sabe, que eu estou esperando a tanto tempo esse ano acabar pra que um novo ano chegue. Como se um numerozinho que mudasse na folhinha renovasse nossos ares. Como se eu precisasse de um recomeço pra que tudo voltasse ao seu lugar. É como se toda essa história de numerologia fizesse sentido. Não, Amor, não ria de mim, nem das minhas crenças infantis. Eu gosto de procurar o sentido das coisas nos detalhes.

Eu reclamei e observei que durante esse ano inteiro a gente ficou mais sério, cheio de responsabilidades e afazeres, cheios de probleminhas, alguns problemões... Quando me queixava disso, sempre ouvia, de você, ou dos amigos, sabe, que é por que a gente estava se tornando gente grande.

Olha, eu não entendo por que abandonar o espírito aventureiro da juventude e tornar-se responsável pela própria vida, compromissado com a carreira, pode ser sinônimo de infelicidade. Lembra daquela crônica do Arnaldo Jabor que eu adoro? "Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. Putz! A vida já é um caos, por que fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável (...)" Amor, muitos amigos me disseram que estávamos ficando sérios por que as coisas estavam ficando difíceis e por que estávamos 'virando gente grande'. Nós saímos pra nos divertir algumas vezes esse ano e sentamos, ficamos com sono, reclamamos da música. Lembra do que a gente falava nessas horas? "Estamos ficando velhos mesmo".

Não! Uma coisa não tem nada a ver com a outra! Não tem! Ter responsabilidades não é ser infeliz! Por que não conseguimos mais arriscar a sorte por uns segundos e ser invadido por aquele sentimento de vida, vida sabe, vida mesmo, vitalidade, alegria? Se amadurecer é isso, quero imaturidade eterna! Eu não vim pra esse mundo pra ser infeliz! Eu não vim pra esse mundo pra ficar realizando e planejando um amanhã, desesperadamente, comprometendo e suprimindo a felicidade de hoje!

Amor, quando o número da folhinha mudar, quando esse ano for ano passado e a gente entrar na ilusão de que estamos em um ano novo, eu não quero que a gente tenha vida nova. Eu não quero realizar os objetivos que coloquei na agenda. Quero viver de imprevistos! Eu quero que a gente tenha aquela vida antiga, divertida, intensa. Vamos parar nossa maturidade por aqui. Vamos sentir a chuva cair nas nossas costas enquanto a gente corre embalado por essa emoção gostosa de viver com medo. Com medo de ser descoberto. Com medo de não conseguir voltar pra casa. Com medo de os nossos pais olharem as horas. Com medo! É, pra quê a certeza? Pra que tanta segurança? Por que prometemos sempre estudar mais no ano que vem? Trabalhar mais? Vamos prometer rir mais. Fugir mais. Fazer mais sexo no capô do carro! Vamos amor! Ninguém veio a esse mundo para ser infeliz!

Você disse que iria voltar a viver a vida intensamente! E aí, voltou? Eu acho que não! Vamos parar de fazer planos que exigem tanto de nós! Se a numerologia falhar e não mudar nossos destinos quando o ano recomeçar, vamos fazer a mudança com as nossas mãos. Eu te amo, Amor. E eu amo muito a vida. Quero que esse sentimento ferva em minhas veias. Feliz Ano Novo!



27 de outubro de 2012

Era uma vez... o Joãozinho

Joãozinho era conhecido por todos. Era rodeado de colegas, todos sabiam o nome dele. Não é por que é "Joãozinho", entende? É que ele tinha isso de magnetismo. Os corredores viravam-se quando ele passava com seu sorriso brilhante, furta-cor, que furtava as cores todas do mundo e devolvia pra quem estava em volta.

Em volta, em torno dele. O mundo ao seu redor era radiante, cheio de gente. Muita gente transmite muita vida. É gostoso demais ser cercado de vida. De vida dos outros, que também é meio nossa, de sonho dos outros que às vezes se sonha junto. Joãozinho era assim, meio que sem querer, de repente, se pegava sonhando o sonho dos outros.

Diziam pro Joãozinho que ele era especial. Ele podia acreditar. Por que era o Joãozinho, aquele que tinha a todos e que todo mundo podia ter. Não era mentira não, o Joãozinho era assim, querido, um brilho saía dos olhos dele, uns olhos doidinhos por ver a vida se deixar viver daquele jeitinho gostoso.
Mas Joãozinho era ingênuo. Jamais saberia que aquela felicidade em torno dele era uma luz que um dia apagaria. Joãozinho era a Lua, que refletia a luz do Sol e do Universo inteirinho, mas não brilhava sozinho.
Não dava pra ver, mas Joãozinho era só. Na verdade eu via, às vezes, que Joãozinho pelos cantos suspirava sabendo que cada um era um só no mundo. Mesmo sem nunca Ler Guimarães Rosa Joãozinho sabia, assim, meio sem querer saber, que "cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo que parecendo que está pertinho".

Era solidão aquilo. Nunca, alguém soube, nem ele, mas ter vida em torno de si não é o mesmo que ter vida por dentro. Ter em volta, ter por fora, isso não é ter, sabe? Isso passa, por que vem de lá, de longe.
Entenda, Joãozinho estava sempre assim, nessa ilusão de que tinha motivos pra sorrir. mas não eram motivos próprios. Não conte a ele esse segredo, não saber disso o faz sorrir.

Ele sempre ganhou muitos abraços, mas abraços que não tornavam-se vínculos. Joãozinho era de todos demais, era tanto de todo mundo que não teve ninguém. Ele tinha duas mãos, que não entrelaçavam-se em outras duas. Eram dois bracinhos finos, curtinhos, que de tanto tentar abraçar o mundo acabavam ficando sempre vazios.

É um segredo meu, agora um segredo nosso, ninguém mais precisa saber, mas Joãozinho, de tão feliz, era triste.

20 de outubro de 2012

A síndrome dos revolucionários-de-facebook



O nosso final de semana foi tomado pela indignação dos "cults" perante o fato de todo o Brasil parar em frente à TV pra ver novela. Mais grave: todo o Brasil parou diante da Globo, a emissora que manipula, faz sua cabeça e vende seus candidatos nas eleições. É motivo para um grande protesto à alienação daqueles que mais uma vez se deixaram levar pela mídia. Nossa, que pecado!

Parem. Fico com vergonha por vocês. Estava há muito tempo a observar essa moda besta de "ser revolucionário", "cult", "a nata da intelectualidade", "o herói que consegue ficar imune aos raios hipnotizantes superpoderosos da TV". É chique demais fazer protesto na cadeira de frente pro computador. Protesto que sustenta o ego, e não ideias.

É como aquela crítica feita no comecinho de 2012 por Bruno Medina, integrante dos Los Hermanos, à música de Michel Teló, que naquela época estourava na Europa. O músico desejou que Teló passasse um bom tempo em turnê, para que a música "ai se eu te pego" e sua dancinha parasse de infectar o "cérebro" dele e dos demais intelectuais do rock alternativo.

É o mesmo raciocínio, tolo, tosco. Poque assim como não se deveria viver acreditando só naquilo que a novela da Globo ensina, seria bom que também se buscasse conhecer músicas em que os instrumentos sejam bem elaborados ou que tenha uma letra boa, alguma crítica.

Seria bom. Mas não faria ninguém mudar o mundo. Não significa que há o direito de repúdio ao fato de um cantor preferir lançar músicas com o único objetivo de lazer e dancinhas de sábado a noite. Não é só o fato de a música existir que causa a alienação e o desinteresse pelos assuntos sérios do país. Quem se interessa pelos Direitos Humanos ou pelo caso de Malala não o deixou de ser só por que parou para ver a Carminha ontem ou quis dançar forró hoje. Quem nunca teve interesse ou instrução para ter este tipo interesse, está preso em toda uma mentalidade que está agregada ao histórico cultural de nosso povo. Não é atacando dois ou três programas da TV que alguém poderá mudar isto.

Quem entendeu a movimentação pelo fim da novela na sexta como "a grande manifestação do poder da Globo" fez alguma coisa pelas pessoas do nosso país que só tem acesso a este tipo de instrução? Ou preferiu ver mais um episódio de The Big Bang Theory?


Será que quem repudia as músicas que nada acrescentam ao nosso cérebro buscou convencer os amigos de não serem coniventes com as músicas que degradam a mulher ou que banalizam o sexo? Ou apenas continuam com orgulho ferido e ouvindo músicas que protestam o ontem como se isso mudasse o mundo hoje?

Parem com essa mania pobre de etiquetar a si e aos outros. Mexam-se em silêncio por algo que sustente suas ideologias e filosofias de vida, e sintam-se em paz para descansar a noite na frente da TV. Não vai os fazer uma pessoa pior. Só os fará menos hipócritas. Berrar aos 4 cantos de uma rede social dizendo que você é o revolucionário do século não é o mesmo que agir.
Cão que ladra, não morde.

20 de agosto de 2012

Eu não quero escrever sobre o amor






Era uma vez, eu. Amante e passional com tudo que vivia. Descontrolada, apaixonava por qualquer história que me tocava o coração. Intensa, jurava que a minha felicidade era plena por que eu era entregue. Às pessoas, ao amor. Eu dizia que gostava de viver todas as emoções ao extremo. As boas e as ruins. E dizia que era bom sair machucada, desde que vivesse tudo com o corpo e a alma.

E era uma vez em que eu me machuquei. Doeu. E como é que todo mundo que se decepciona diz? Que nunca mais vai amar de novo. Que as paixões são todas uma grande besteira. Coisa de adolescente bobo. E que vida boa mesmo é a dos copos cheios e corpos vazios.

Me ensinaram que eu era ingênua. Me corrigiram o modo de ser. Disseram que eu acreditava em todo mundo, e que isso era errado. Me mandaram ficar esperta. Eu fiquei.

Comecei a ler sobre as pessoas, sobre personalidades, sobre o amor. Me tornei a melhor conselheira amorosa de todas as minhas amigas. Li Carpinejar e Jabor, filosofei sobre relacionamentos por muito tempo. Fiquei especialista. Craque. Fortalecia minha armadura cada dia mais. Estava sempre protegida. A qualquer ameaça de sentimentos fortes, eu era uma tartaruga e me escondia na carapaça.

As pessoas me perguntavam o que é que faziam de errado e eu sabia exatamente o que era preciso: escute sua cabeça, não escute o coração. O coração da gente é burro, não liga pra ele. Pensa no seu futuro, pensa só em você.

Não mude de cidade por causa de um amor, não coloque a mão no fogo por amizade nenhuma. Pense bem antes de amar. Não ligue. Não corra atrás. Não se humilhe. Não precise de ninguém. Não perca tempo, não desperdice chances. Faça planos e cumpra-os.

Foi pensando assim que eu e uma amiga criamos uma nota, de regras que seguiríamos no nosso próximo relacionamento. Artigos e parágrafos definidos, assim como toda lei deveria ser. Nele dividíamos quantos dias deveríamos equilibrar entre amigas e o namorado. Que não seríamos ciumentas. Que mandaríamos em nós mesmas. Afinal, é sim, possível, mandar no coração.

Eu vivia bem! Resolvia os problemas sentimentais de todas as pessoas! Sabia relatar cientificamente o que tinha acontecido numa briga entre eu e o meu pai. Sabia explicar que a família era uma relação burguesa e as amizades eram frutos duma relação de consumo. Nunca mais fui alienada, nunca mais fui idiota, nunca mais me machuquei.

Nunca mais vivi.

A gente não é feliz se viver pensando. Bom é viver a vida com gosto de susto. Errar o caminho. Errar de namorado. Errar de conceitos. Quando me vi, estava vivendo tudo tão protocolado que meus sentimentos estavam organizados numa planilha do Excel. Eu realmente ainda sei tudo sobre o amor, sobre não chorar pra quem não te fez sorrir. Essas coisas que não tiram a gente do chão.

Esqueceram só de me ensinar que a vida com o pé no chão deixa pegadas na terra, mas não deixa marcas na vida. Sem feridas, não há cicatrizes. E hoje eu me lembrei do que diz o próprio Carpinejar: "felicidade não se planeja, felicidade se descobre". E aí eu lembro que eu já segui uma máxima dessas há um tempo atrás, do querido Guimarães Rosa: "Felicidade se encontra é em horinhas de descuido".

E com esses refrescos na memória, eu, a tartaruga, resolvi sair da carapaça, e fui me descuidar. Que eu seja ingênua, que eu tire o pé do chão. Afinal, a gente manda sim, no coração. Mas é muito mais feliz se deixar que o coração mande na gente.

30 de julho de 2012

Dica de Beleza


Eu não sei conviver. Sou boa filha, ajudo na cozinha, sou competente com minhas obrigações, notas altas, piadista, gosto de esportes. Mas não sei conviver. Isso de ser engraçado não tem muito a ver com ser bem humorado, aceitar as zombarias, os dias em que tudo deu errado, os pensamentos diferentes. A convivência é um duro fardo pra quem só sabe viver de um jeito. Não sei aceitar favores. Me sinto dependente. Nem sempre quero fazer favores. Me sinto mesquinha. Esses dias atrás, aprendi a respeitar diferenças. E agora, não sei tolerar quem não sabe fazer o mesmo.

Eu convivo com uma criança. Criança não calça o chinelo. Não guarda os brinquedos. Não pára pra assistir o jogo da seleção brasileira. Não fala baixo no seu ouvido. Eu convivo com a minha família. Família não tem cerimônia. Família pode entrar no seu quarto e sentar na sua cama - espera, tio, que essa colcha tá limpa! Família pode usar seu carro. Saber da sua faculdade. Saber dos seus novos namorados - na hora da ceia do Natal. Eu convivo com meus amigos. Amigos... que casaram com 18 anos, que nunca vão querer saber de casar. Amigo que não leva a faculdade a sério. Amigo que leva a faculdade a sério demais. Amigo que não quer ficar rico, amigo que quer ficar muito famoso. Amigo babaca. Todo tipo. Todos errados. Não tolero a forma de viver de nenhum deles. Não me levem a mal, amiguinhos.

Sei como é que faz pra ser boa filha, boa amiga, boa namorada, boa sobrinha. Mas só existe esse jeito. Não errem. Não encostem no meu celular, e tire já o dedo da tela do meu computador. Proteste com os grevistas da Federal. Goste de ler livros. Ouça rock. Só quem escuta rock é inteligente. Entenda de história. Boas pessoas sabem tudo de história. E tira esse copo sujo daqui, eu não gosto de bagunça.

E nem de ser velha assim.

Eu não tenho que estar certa. Eu tenho que estar em paz. Apontem os meus erros, eu posso te escutar sem me corroer pela sua crítica. Seja diferente de mim. Deixe o cachorro bagunçar a casa. Acabei de ler um texto do grande Carpinejar, publicado no jornal Zero Hora, em que ele respondia a uma menina que queria namorar sério com um cara. E nessa resposta ele disse pra moça ficar numa boa com seu rapaz. Que "Só a morte é séria. O amor é pra ser divertido".

Tudo é pra ser divertido. Pra quê que esse café foi cair na minha roupa, logo agora? Esse café me ama. Vou rir disso tudo. Muita gente não consegue emprego, é assim mesmo. Uma hora dá pra mim. E esse brinquedo aqui no meu caminho? Como é que brinca com ele? Estou sem grana de novo. Dançar na chuva é de graça?

Implique comigo, seu estressado. Eu é que não vou dar motivos pra minha gastrite. Agora eu sou "zen". Ouvi dizer que ser maleável e tolerante é bom pra pele e pro cabelo. E eu preciso estar linda amanhã.

27 de julho de 2012

TRAUMAS PÓS-MODERNOS

Antes de ir trabalhar, liguei a TV. Logo cedinho, já diziam que o trânsito estava caótico. Temeroso, saí de casa ciente de que um desastre poderia acontecer. Atropelaria, ou seria atropelado. Bateria o carro. O pior aconteceria. Quem sabe agora. Agora. Nada. Agora, então? Mais nada! Graças a Deus, não foi comigo!

Entrei tranquilo no elevador, com alguns colegas. "Bom dia", "bom dia". "Não tô gostando de andar de elevador não, cara. Ouviu dizer que um tanto de elevador andou travando por aí?" Um deles disse. Gelei minhas perninhas finas. Minha voz máscula desapareceu. O elevador não chegava nunca. "Será que travou?". Não travara. Mas logo travaria. Lera Guimarães Rosa na noite anterior: "O trágico não chega a conta gotas". Então vai ser é de repente. Não? Não travou. Foi um milagre.

Sentei na minha cadeirinha, eu estava uma pluma de tão leve. Até que alguém gritasse "desliga esse som aê, meu! Todo mundo preocupado com essa crise e você aí? Poxa heim!" Era comigo? Sim, era comigo. Uma vergonha, ignorei essa tensão mundial. Me pus a ler e reler os benditos gráficos. Crise, crise, crise. Estão todos sofrendo com a crise. Eu devo sofrer também. Ser solidário. Trabalhei em silêncio, fiquei triste, mas fazia o certo, claro. Luto coletivo.

Meio-dia. Era hora de sair para o almoço. Buzinei pro Mauro. "Bora Negão!". Eis que uma mocinha que passava parou. "Ôh mãe, aquele moço chamou o outro de 'negão'?? Ué, mas não é errado? Pode falar assim com os afro-descendentes, pode?" Com essa eu fiquei mal, dessa vez eu fiquei mal mesmo. Foi com um amigo, meu grande amigo, com quem errei desta vez. Vê-lo entrar em meu carro foi uma tortura. Ele foi capaz de me perdoar apesar da ofensa.

"Não vamos comer carne, né"? Não, claro que não. "Porque não?" pensei. Eu ia lá saber! "Agora sou vegetariano, meu caro. Vamos pensar nos milhões de vaquinhas morrendo por nós." Como eu nunca pensara nisto? Que egoísmo de minha parte. Mauro estava certo. Que coração bom o do meu amigão.

No restaurante, álcool em gel pra todo lado. "Passar bastante entre os dedos. Não utilize utensílios compartilhados". As recomendações rondavam minha cabeça. Quantas pessoas já não teriam usado aqueles talheres? "Gripe suína mata, ,gripe suína por toda parte. Gripe suína vai pegar você!". Quase morri - de fome. Não consegui comer nadinha. Não seria exagero, pois poderia me contaminar. Se comesse seria o meu último almoço. 

Saímos do restaurante. "Enfim, um ambiente aberto! Que abafado aquele lugar". Comentei e respirei fundo. "Ambiente aberto? E daí?" Mauro me reprimiu. "Olha pra este céu cinzento, esse mundo está poluído demais". Maurão tinha razão. Senti meu pulmão arranhando. Seria sintoma de uma pneumonia? Meu pulmão poderia estar cheio de resíduos tóxicos. Trabalhei o resto do dia tossindo. Mas terminou tudo bem.

Cheguei em casa, liguei a TV. Estava muito calor, mesmo a noite. A TV dizia: "você sabia que o seu cachorro é mais responsável pelo efeito estufa que seu próprio carro? A produção de ração emite mais CO2 que a queima de combustíveis fósseis!". Senti mal por alimentar o Half com ração. Eu sou um mau-caráter, não faço nada certo? Nada? Outra manchete: "Violência urbana continua a crescer vertiginosamente". Falta de ar, desespero, medo. Não resisti. Sofria uma crise existencial. Não sou capaz de fazer nada direito e seria assaltado no dia seguinte. Eu senti que seria. Pra quê viver? Subi na janela. Pulei. Levei o Half comigo. Era ele o culpado por aquele calor todo.





Escrevi esse texto no dia 29 de novembro de 2009. É um iniciador, já me serviu como grande estímulo. O meu preferido.

DOS RÓTULOS

Em cinco anos morando em Goiânia, nunca percebi risco de assalto andando de 006, 020, ou no Isidória, no terminal do Cruzeiro e no terminal da Praça da Bíblia, mesmo a noite. Ainda assim, quando mudei pra cá, fui instruída a segurar a bolsa e não conversar com estranhos nesses lugares.

Por outro lado, me disseram que me colocariam num dos melhores colégios de Goiânia no ensino médio, e disseram também que eu deveria estudar na melhor faculdade de Direito da cidade, por que era nesses lugares que estavam as pessoas melhor instruídas, com as quais eu deveria conviver.

O primeiro furto que me ocorreu foi de um livro de biologia, dentro do colégio em que estudava (que parece um shoping!), depois, um "chaveirinho da Kipling" e depois, um celular. Na grandiosa faculdade de Direito onde só estudam pessoas com considerável grau de discernimento, conhecimento e cultura, abriram minha bolsa, na minha ausência, retiraram carinhosa e educadamente 30 reais da minha carteira e levaram junto com um celular Samsung touch screen.

Hoje, estava só procurando por um pen drive perdido, quando ouvi de diversos colegas, diferentes histórias do tipo "já sumiu o computador da fulana aqui, sabia? O fulano também deixou o notebook lá na sala tal e quando voltou não estava mais lá". O mesmo tipo de comentário que eu ouvia no meu colégio de ensino médio. "Roubam livros pra poder ir pra festas, cê pira?".

Piro não. Vou aprender a lição de uma vez por todas. Se meu dinheiro caísse aqui no ônibus em que eu estou agora, alguém me avisaria: "moça, o dinheiro!" (sei disso por que já me aconteceu). Mas se eu deixar qualquer coisa de valor na faculdade de pessoas cultas e educadas em que estudo, devo estar absolutamente preparada para perdê-la. Os valores estão invertidos, me ensinaram trocado. As pessoas que me furtaram nesses recintos vão se formar e se tornar profissionais corruptos.

Os "malas" de Goiânia tem iPhone e tv a cabo em casa.

O começo

Ontem eu queria escrever sobre despedida. Eu fiquei bem triste com uma despedida que tive. Hoje, com a criação do meu novo blog, quis escrever sobre o começo. E acabei percebendo que o começo e a despedida são dois lados da mesma moeda. Despertam sentimentos opostos, mas com a mesma essência.

A despedida é uma saudade antecipada. Já se sente a falta que alguém vai fazer enquanto ela ainda está do seu lado. A dor vem antes do tchau. Difícil isso de ter de ficar longe de quem mais se quer estar perto. A gente imagina amanhã, depois, o entardecer e o anoitecer sem a pessoa que está ali, do seu lado. Dói, mas nada aconteceu ainda. Tudo vem de dentro, uma ideia de como poderia ser.

Não foi diferente, hoje. Um começo. Imaginar como poderia ser o blog em que escrevo agora. Que imagem combina com o que eu ainda vou escrever, que título combina com o que ele ainda não intitula. Qualquer começo é assim. Começo de namoro é sempre bom por isso. No começo de um relacionamento nos comportamos de acordo com aquilo que se pretende viver (e nem sempre o romance imaginado é compatível com o desastre que vem depois...). Constrói-se uma casa, mobilha-se, decora-se, pensando em como é que vai se viver nela, mas ninguém garante que vai ser daquele jeito mesmo. O homem tem essa mania de criar suas certezas. Na cabeça da gente, está sempre tudo pronto. A ansiedade é o futuro adiantado na nossa mente.

Por isso, são frustradas essas tentativas de "não criar expectativas". A imaginação é mais rápida que a razão. Os medos, as dores, e as alegrias, são todas projetadas antecipadamente. O começo desse blog me fez imaginar como ele seria, eu criei umas expectativas e ele já está diferente do que minha imaginação criou. Agora, vejo quem poderia estar lendo, quem me criticaria, que crítica faria? Como é que vai ser daqui por diante? A minha imaginação já criou uma resposta.

O começo é uma despedida daquilo que existia antes. Todo começo impõe um fim à estabilidade que precede os tremores das tentativas. Não me adapto bem às mudanças, admiro quem é maleável, mutável. Alguns começos são difíceis por que só existem quando outras coisas terminam. A verdade é que a gente tem que começar e despedir ao mesmo tempo. De quase tudo. Todo dia, de uma forma diferente.